Especial ONGS II

Da filantropia, passando por movimentos sociais, ao investimento de empresas

O "boom" no surgimento das Organizações Não Governamentais no Brasil está ligado ao fim da ditadura militar. Recentemente, vem crescendo o número de empresas que enxergam no investimento social um diferencial de marca
Por Carlos Juliano Barros
 27/03/2007

Instituições preocupadas em atender os direitos básicos dos seres humanos existem há tempos imemoriais. "A Igreja e as religiões em geral sempre foram fomentadoras dessa consciência, da idéia de ajudar o próximo", afirma Simone Coelho, autora do livro "Terceiro Setor" (Senac). Já as primeiras referências ao termo Organização Não Governamental (ONG) remetem ao fim da 2a Guerra Mundial. "Ele aparece na ONU para definir organizações espontâneas da sociedade civil que tratavam de assuntos de interesse público, para a reconstrução de países onde o serviço social fosse muito esparso", explica Paulo Haus Martins, advogado da Rede de Informação para o Terceiro Setor (Rits).

No Brasil, a gênese das ONGs se confunde com o recente capítulo de redemocratização do país, a partir dos anos 80. Elas passaram a funcionar como um novo canal de diálogo entre o Estado e a sociedade civil, que antes só se manifestava por meio de movimentos sociais e de partidos. "Com a abertura política, houve a possibilidade de se fazerem parcerias. E esse processo de relação obrigou os movimentos a se institucionalizarem. Muitos deles se transformaram em ONGs", conta Simone.

Na década seguinte, com os fantasmas da ditadura devidamente exorcizados, ocorreu um boom no surgimento de associações civis e fundações privadas por todo o país. Fonte de inspiração importante foi a realização da Eco 92 no Rio de Janeiro, conferência que reuniu dirigentes de nações do mundo inteiro, além de ONGs de peso, a fim de debater medidas para promover o desenvolvimento sustentável do planeta. Com a eleição de Fernando Henrique Cardoso (FHC) e o processo de abertura para o mercado e de reforma do Estado brasileiro, essas instituições encontraram um ambiente propício para se desenvolver.

Logo no primeiro ano de gestão, sua esposa Ruth Cardoso capitaneou a criação do Comunidade Solidária, que mobilizou entidades da sociedade civil para tentar sanar problemas crônicos do país por meio de ações que não se limitassem ao mero assistencialismo. É nessa época que surgem programas que se mantêm atuantes até hoje, como o Alfabetização Solidária. O Comunidade Solidária também deve entrar na pauta de investigações da recém-criada Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) das ONGs. Aprovada no último dia 15 de março, ela deverá investigar supostas irregularidades nos contratos feitos entre o poder público e entidades da sociedade civil.

Uma das críticas mais comuns à proliferação das ONGs diz respeito à suposta desobrigação do poder público para com a área social, na medida em que o Estado usaria essas organizações para transferir suas responsabilidades à sociedade civil. Mas, na opinião de Anna Peliano, pesquisadora do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), a crítica não procede. "De 1995 a 2005, período em que houve uma explosão no crescimento do terceiro setor, o orçamento social no âmbito do governo federal aumentou 72%. Portanto, trata-se de um movimento conjunto", avalia.

Mudanças na legislação também reestruturaram esse setor, ao longo dos dois mandatos de FHC. A Lei do Voluntariado, de 1998, estabeleceu uma nova relação de trabalho ao criar o "Termo de Adesão", que disciplina a prestação de serviços sociais sem remuneração. "A CLT (Consolidação das Leis Trabalhistas) era muito perversa com as ONGs. Qualquer voluntário que deixasse uma entidade e acionasse a Justiça contra ela, reivindicando direitos não quitados, acabava ganhando", explica Simone Coelho. No ano seguinte, foi promulgada a lei que criava a figura da Organização Social Civil de Interesse Público (Oscip). Na verdade, trata-se de um título concedido pelo Ministério da Justiça para ONGs cujo estatuto explicite essa vocação para o "interesse público". Com esse status, ao contrário do que acontece em uma associação civil comum, seus dirigentes podem ser remunerados. "A figura da Oscip surgiu também para profissionalizar as ONGs e diluir o caráter assistencialista", avalia Maurício Mirra, coordenador do núcleo de planejamento de projetos do Instituto Ethos de Responsabilidade Social.

Outro fenômeno bastante significativo a que se assiste na última década é o incremento das ações sociais promovidas por empresas. A segunda edição da pesquisa "A iniciativa privada e o espírito público" – feita pelo Ipea e lançada no ano passado com dados relativos a 2004 – mostra que quase 70% delas realizam algum tipo de medida nesse sentido. "Quando se analisa o conjunto das empresas no Brasil, em que a grande maioria é de micro e pequeno porte, predominam ações na área de alimentação e assistência, ou seja, o atendimento a demandas emergenciais de comunidades vizinhas. Agora, quando se observam as grandes, cresce a participação em ações de educação", destaca Anna Peliano.

Na opinião de Eduardo Pannunzio, advogado do Grupo de Institutos Fundações e Empresas (Gife), que reúne as maiores corporações que investem na área social no país, "esse é o padrão da evolução do investimento social privado. Em geral, quando uma empresa começa a investir socialmente, ela atua de forma local e assistencialista. Depois, chega uma fase em que ela se profissionaliza, e passa a trabalhar mais com causas e menos com sintomas dos problemas sociais, atuando em conjunto com políticas públicas na área".

A pesquisa do Ipea traz ainda duas informações curiosas. A primeira é a de que algumas empresas ainda temem divulgar suas ações sociais por receio de estimularem a procura por aqueles que precisam de auxílio. "Mas essa mentalidade está mudando. Elas estão percebendo que isso pode ser um diferencial de marca", explica Anna. Além disso, quando se comparam a primeira – com dados do ano 2000 – e a segunda edição do estudo, nota-se uma redução do volume de recursos empregados na área social, de R$ 6,9 bilhões para R$ 4,7 bilhões. Porém, isso se deve mais à retração econômica do país do que a um esfriamento do espírito público dos empresários. "Quando se perguntam os fatores que os levariam a atuar mais, um dos primeiros itens levantados é justamente o crescimento econômico", acrescenta Anna.

Clique nos links abaixo para ler as outras partes da reportagem:

Parte I – ONGs: o desafio de garantir transparência sem restringir liberdade de atuação

Parte III – Independência financeira também é essencial para garantir autonomia

* Esta reportagem foi publicada em parceria com a revista Revista Problemas Brasilei
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